SINTOMAS
Paulo Leminski
- Doutor, estou sentindo uma rima terrível.
-
Onde é que dói?
-
Às vezes, é bem aqui no peito. Ás vezes, é uma pontada, aqui, na cabeça. -
Quando eu não agüento mais, eu faço um poema.
-
Um o quê?-
Um poema. É uma espécie de mancha que dá bem no meio da página. Tem umas apavorantes. Mas também tem manchas lindas.-
E desde quando lhe acontecem esses poemas:-
Desde sempre. Desde quando, antes do ventre da minha mãe, eu fui pensado em alguma galáxia distante, por um planeta boiando na luz de um sol azul-amarelo-vermelho-verde-prata...-
Deixe-me ver sua língua.-
O senhor não me leve a mal, mas é uma língua apenas portuguesa. Pouca gente no mundo já viu uma língua como essa.-
É, está feia sua língua. Mas não se incomode, que língua portuguesa ninguém presta atenção.-
Não é só a língua, doutor. Às vezes tenho visões.-
Visões?-
É, vejo círculos, quadrados, triângulos inscritos em hexágonos, e linhas, linhas, linhas...-
O senhor conhece matemática?-
Só de nome.-
É, é mais grave do que eu pensava.-
Vou morrer?-
Um dia vai. Mas antes vai ser pior. O senhor pode ficar famoso.-
Para sempre?-
Não, quando é para sempre a gente chama de glória. A fama passa.-
Ainda bem.-
Mas incomoda muito. Não tem horas em que o senhor sente que tem um estádio inteiro lhe aplaudindo de pé?-
Onde, doutor?-
Dentro da sua cabeça, é claro. Onde mais?-
Que alívio o senhor me contar isso. Pensei que estava ficando louco.-
Quem sabe? Quem sabe o que é loucura?-
Vá saber.-
Deixa eu completar os exames. Tem sentido muitos sintomas de concretismo ultimamente?-
Só quando vejo uma folha de letraset.-
Perfeito. Tem sentido algum soneto?-
Só de manhã, quando eu vou dormir de estômago vazio.-
Impulsos marginais?-
Depois que fui editado pela Brasiliense, meus sintomas marginais desapareceram. Deviam ser conseqüência do abuso da solidão e do provincialismo paroquial.-
Nada de pornô, espero.-
Um filha-da-puta aqui. Um caralho ali. Cabaço. Gozar. Só essas coisinhas corriqueiras, que vovó não deixava dizer, mas estão no Aurélio.-
Entendo. Não admira que o senhor tenha tido tantos poemas recentemente. Mas vou receitar uma dieta que vai lhe deixar tão bom quanto qualquer subgerente de vendas.-
Antes disso, será que o senhor não me deixava cantar alguma coisa?-
Cantar? Mas eu não tenho nada aqui para o senhor cantar.-
Pode deixar que eu trouxe umas canções comigo.-
Cuidado. Cantar demais faz mal.-
Não se preocupe, doutor. Eu só vou cantar um pouquinho.-
Está bem. Pode começar.-
Desafinar um pouquinho, não ligue. É assim mesmo: “Se houver depois da terra
e nessa estrela
a eterna primavera
pudera, tomara, que a vida quisera
que a gente se encontrara.
Procura vida fica,
Nosso amor mais louco,
Fica tudo muito mais bonito,
Fica a dita que faltou um pouco,
Se houver céu...
Se houver céu,
Como nessa vida não há,
A gente se achou bichinha
A gente se encontrará,
A gente se encontrará...”
- Letra e música suas?
- Letra e música.
- I see. Deixa-me ver. O senhor tem algum vício?
- Eu amo uma mulher chamada Alice.
- Há muito tempo?
- A vida toda.
- O senhor é o caso mais grave de poesia que eu já vi até agora. Preciso consultar uns colegas.
- O que é que eu faço doutor:
- Tome duas estrofes e me telefone amanhã cedo, sem falta.